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07/09/2020 às 12:18

Crônica: Memórias de um caruncho

(*) Rodrigo Alves de Carvalho 

Sou caruncho sim, com muito orgulho. Vivia num saquinho de um quilo de feijão carioquinha jogado no fundo da prateleira de um mercadinho sujo. Não vivia sozinho, além de mamãe e Crisléia (minha namorada), éramos em cerca de 300 carunchos que não faziam nada mais que comer e reproduzir. Meu pai, não conheci, saiu do saquinho de feijão para comprar cigarro quando eu era um carunchinho e nunca mais voltou. Minha mãe acredita que foi esmagado por latas de molho de tomate na prateleira de baixo, mas minhas tias sempre falavam que papai fugiu com uma caruncha mais nova de um saquinho de milho para pipoca. 

Eu nunca tinha saído daquele saquinho de feijão, porém meu sonho era conhecer o México e me tornar um saltador. O caruncho velho sempre contava as histórias dos nossos parentes mexicanos: 

- Saltam mais de um metro de altura. 

Os carunchinhos ficavam fascinados, todos queriam ser saltadores, inclusive eu, mas sabíamos que era improvável chegarmos ao México, nosso destino já estava traçado, ou morreríamos no saquinho de feijão de tanto comer e reproduzir ou acabaríamos cozidos numa panela por uma dona de casa com preguiça de separar os feijões carunchados. 

E realmente não havia perspectivas para mim, o mercadinho era uma pocilga onde se vendia mais cachaça no balcão que os produtos vencidos e mal armazenados. 

Quando cheguei na adolescência da vida de um caruncho, decidi arriscar novos horizontes e parti sem rumo em busca de meu sonho. 

O mundo de fora era colossal, para quem havia vivido entre feijões e carunchos, o mundo do mercadinho parecia incomensuravelmente grande. Vaguei por muitas prateleiras, conheci outros insetos interessantes como bichos de goiaba, larvas de verduras, moscas nojentas, aranhas pernudas... 

Encontrei Raimundo em cima dos sacos de açúcar, era uma pulga de meia idade que vivia no gato preto do dono do mercadinho. Raimundo ficava sobre os sacos de açúcar porque sabia que o bichano costumava dormir ali. Fiquei impressionado com a habilidade de Raimundo em saltar e pedi para me ensinar. 

Foram dias de muito treino, no início não conseguia sequer me mover, mas com o intenso treinamento comecei a dar pequenos saltinhos e finalmente consegui saltar tão bem quanto Raimundo. 

Agora sim! Poderia voltar para casa e mostrar a todos meus parentes carunchos que eu também saltava como os mexicanos. 

Contudo, no dia em que Raimundo havia preparado uma festa de despedida entre os pelos do gato preto com toda a pulgaiada do pedaço, a filha do dono do mercadinho resolveu dar um banho no felino e eu acabei morrendo afogado juntamente com Raimundo e uma porção de outras pulgas. 

Por isso hoje escrevo essas memórias, para deixar não só meu relato de vida, mas também expor minha indignação. 

Sempre fui caruncho, com muito orgulho e não mereci na hora derradeira da morte ser chamado pela filha do dono do mercadinho (minha algoz) de “pulga mais feia que já viu”. 

Isso é revoltante! 


(*) Nasceu em Jacutinga (MG). Jornalista, escritor e poeta possui diversos prêmios literários em vários estados e participação em importantes coletâneas de poesia, contos e crônicas. Em 2018 lançou seu primeiro livro individual intitulado “Contos Colhidos” pela editora Clube de Autores. 


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