Reformas Microeconômicas na Democracia Brasileira: Continuidade, Tensões e Retrocessos como o Saque-Aniversário do FGTS
Alexandre Manoel*
A trajetória das reformas econômicas brasileiras desde a redemocratização evidencia um padrão recorrente: períodos de avanços estruturais convivem com interrupções abruptas, hesitações políticas e retrocessos que comprometem a consolidação institucional de longo prazo.
Durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), o país solidificou sua arquitetura macroeconômica — metas de inflação, responsabilidade fiscal e regulações setoriais mais robustas. Entretanto, como mostram estudos do Ipea e do Banco Mundial, esse ciclo de reformas concentrou-se quase exclusivamente no plano macro, deixando pouco espaço para transformações microeconômicas mais profundas, especialmente naquelas que afetam produtividade, informalidade, ambiente de negócios e eficiência dos mercados de crédito.
Foi apenas no início do governo Lula 1, a partir de 2003, que emergiu uma agenda microeconômica mais articulada. Houve avanços importantes em crédito consignado, modernização da lei de falências e inclusão financeira. Entretanto, como documentam Bonomo e França (2012), essa agenda perdeu tração já em 2006 e permaneceu praticamente estagnada por uma década.
A retomada vigorosa só ocorreu no governo Temer (2016–2018), com medidas estruturantes: reforma trabalhista, revisão da política de conteúdo local, nova governança para estatais, abertura do mercado de jogos com aposta, retomada dos leilões de petróleo e substituição da TJLP pela TLP. Essa agenda encontrou continuidade no governo Bolsonaro (2019-2022), com o marco legal do saneamento, concessões, privatização da Eletrobras e avanços institucionais com a criação do FIAGRO e outros instrumentos essenciais de financiamento e segurança jurídica.
No governo Lula 3 (2023 até os dias atuais), houve também continuidade de reformas microeconômicas, como as reformas tributária e a do marco das garantias — e, pela primeira vez desde a Nova República, acumulamos quase uma década de reformas microeconômicas consistentes.
Esse cenário, contudo, conviveu com tensões. Houve tentativas de reversão em marcos regulatórios, como no saneamento, repelidas por Legislativo e Judiciário. Outras iniciativas, entretanto, prosperaram e configuram retrocessos claros — entre elas as restrições ao saque-aniversário do FGTS, tema central deste artigo.
Criado em 2019, o saque-aniversário representa uma modernização relevante da lógica do FGTS. Até então, o trabalhador só podia acessar integralmente seu saldo em circunstâncias muito específicas: demissão sem justa causa, aposentadoria, compra da casa própria, algumas doenças graves, entre poucos outros.
O saque-aniversário introduziu maior liberdade: todos os anos, no mês do seu aniversário, o trabalhador passou a poder retirar voluntariamente parte do saldo da conta vinculada. Essa retirada não compromete o acesso a outros direitos do FGTS, exceto o saque integral em caso de demissão sem justa causa — que passou a não mais ser possível para aqueles que optassem pela modalidade.
Para compensar essa limitação, havia uma alternativa eficiente e amplamente usada: a antecipação do saque-aniversário por meio de instituições financeiras privadas, que, mediante cessão fiduciária, emprestavam ao trabalhador múltiplas parcelas futuras do saque. Com risco praticamente nulo, por tratar-se de crédito garantido no saldo do FGTS, a operação tinha juros significativamente menores que o crédito pessoal tradicional.
Essa combinação — saque anual + possibilidade de antecipações — atendia aos três objetivos centrais estabelecidos para esse avanço institucional: (i) elevar produtividade ao reduzir restrições de liquidez; (ii) reduzir informalidade ao aumentar o retorno líquido do emprego formal; (iii) mitigar a “taxação implícita” associada à baixa remuneração do FGTS.
A literatura sobre informalidade no Brasil — incluindo Ulyssea (2018), estudos do Banco Mundial e pesquisas do Ibre/FGV — aponta dois determinantes centrais que desestimulam o emprego formal: o alto custo do trabalho e as restrições de liquidez enfrentadas pelos trabalhadores. A antecipação do saque-aniversário atuava justamente sobre esse segundo ponto. Ao permitir que trabalhadores formais acessassem parte de seu FGTS — uma poupança compulsória com baixa remuneração — a política reduzia restrições financeiras de curto prazo e diminuía o diferencial de bem-estar entre as ocupações formais e informais.
Quando esse diferencial se estreita, o trabalhador percebe maior vantagem em permanecer empregado formalmente, investe mais em capacitação, reduz sua rotatividade e tende a elevar sua produtividade. Do lado das empresas, a menor rotatividade e a maior previsibilidade de permanência dos trabalhadores aumentam o incentivo à contratação com carteira assinada, contribuindo para a redução da informalidade.
Alguns indicadores macroeconômicos posteriores se alinham a essa interpretação. Em 2019, a informalidade havia alcançado 41,1% — o maior nível desde 2016. Após a pandemia, caiu para a faixa de 36% a 37% e permaneceu estabilizada abaixo do patamar pré-2019, chegando a 37,8% em junho de 2025, com recorde de empregos formais segundo o Caged.
No campo da produtividade, séries do Ipea e do IBGE registram forte queda entre 2015 e 2020, seguida de estabilização a partir de 2021 e leve recuperação em 2024-2025, sobretudo em serviços formais e na indústria. Embora diversos fatores expliquem essas dinâmicas, é plausível — e metodologicamente honesto — reconhecer que o aumento de liquidez para trabalhadores formais, viabilizado pela antecipação dos saques, contribuiu para um ambiente mais favorável à formalização e à produtividade marginal do trabalho.
Foi nesse contexto que o governo Lula 3 promoveu um conjunto de mudanças que, na prática, desestruturaram o funcionamento do saque-aniversário. As novas regras implementadas especialmente em 2025 estabeleceram travas que reduziram drasticamente a possibilidade de antecipações. Essas restrições provocaram queda superior a 80% nas operações de crédito lastreadas no FGTS em poucos meses.
A justificativa oficial era proteger o trabalhador de um suposto “endividamento excessivo”, embora a modalidade tivesse inadimplência praticamente nula e juros relativamente baixos justamente porque o risco era integralmente coberto pelo saldo do FGTS. Essa iniciativa do governo Lula 3 segue o raciocínio de que o Estado (ou os burocratas) presume saber melhor que o trabalhador como ele deve usar seus recursos — debate parecido ao que ocorreu em 2003, quando o governo Lula avaliava se adotaria o Bolsa Família, que dava mais liberdade ao beneficiário, ou o Fome Zero.
Na prática, a medida extingue o componente mais eficiente da política: o canal de liquidez. Com isso, reduz-se a renda disponível e a capacidade de suavização de consumo das famílias, desmonta-se um mecanismo moderno de crédito privado com risco baixíssimo, enfraquecem-se incentivos à formalização e contrariam-se recomendações de organismos internacionais, que defendem políticas pró-trabalho baseadas em redução de rigidezes financeiras.
Há ainda um choque de políticas públicas difícil de justificar: enquanto a política de isenção do Imposto de Renda pretende aumentar a renda disponível das famílias em cerca de R$ 28 bilhões por ano em 2026, as restrições ao saque-aniversário retiram da economia praticamente o mesmo valor — R$ 28,8 bilhões, segundo estimativas da ABBC. Ou seja, uma política anula o efeito de estímulo da outra.
Logo, esse retrocesso não se limita ao plano econômico; tem também implicações políticas e talvez o governo não tenha se dado conta disso. Em ano eleitoral, a redução de liquidez para trabalhadores formais irá contrastar com a expectativa de que a política de isenção de imposto de renda amplie bem-estar — o que torna a decisão ainda mais difícil de compreender. Ademais, ao desmontar parcialmente uma política que ampliava liberdade, liquidez e eficiência alocativa, o governo rompe a continuidade institucional construída desde 2003, retomada em 2016 e aprofundada até 2022.
A história econômica brasileira mostra que avanços microeconômicos exigem consistência, previsibilidade e resistência às tentações de curto prazo. A reversão do saque-aniversário ilustra os custos — econômicos, sociais e possivelmente políticos — de abandonar esses princípios. Se reformas microeconômicas levam anos para gerar efeitos positivos, basta um conjunto de decisões mal calibradas para comprometer o caminho construído.
O Brasil, mais uma vez, enfrenta o risco de desperdiçar uma oportunidade de consolidar ganhos institucionais que poderiam elevar produtividade, reduzir informalidade e, sobretudo, ampliar as liberdades econômicas dos trabalhadores.
*Economista e sócio da Global Intelligence and Analytics ( GIA). Ex-secretário nos ministérios da Fazenda e da Economia (2018-2020).
Referências Bibliográficas
ABBC - Associação Brasileira de Bancos. (2024). Nota Técnica sobre os impactos da restrição à antecipação do Saque-Aniversário do FGTS. Brasília.
Banco Mundial. (2003). Brazil Investment Climate Assessment. Washington, DC.
Bonomo, M.; França, M. (2012). "A Agenda Microeconômica e seus Entraves." Revista Conjuntura Econômica, FGV.
FGV/Ibre. Diversos estudos e séries históricas sobre informalidade e produtividade (2018-2025). Inclui: Boletim Macro Ibre, Observatório de Produtividade.
Ipea. (2021-2024). Indicador de Produtividade do Trabalho - IPT.
Ulyssea, G. (2018). Firms, Informality and Development: Theory and Evidence from Brazil. American Economic Review.