Jorge Luiz Bezerra

Arquitetura da Intimidação: vandalismo sistêmico, facção criminosa e a fragilidade da ordem pública no transporte coletivo paulista

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Resumo
Este artigo analisa os ataques sistemáticos a ônibus na Região Metropolitana de São Paulo, com foco nos apedrejamentos recorrentes entre junho e julho de 2025. Argumenta-se que tais eventos configuram uma forma de sabotagem organizada e revelam, apesar dos esforços das autoridades públicas, falhas estruturais na articulação entre empresas concessionárias, forças de segurança e políticas públicas. A análise é sustentada por referenciais da criminologia urbana, concepções da Escola de Chicago, tais como: a Criminologia Ambiental, através do pensamento de Patricia L. Brantingham e Paul J. Brantingham (criadores da Teoria do Padrão Criminal); a Prevenção Situacional do Crime, de Ronald V. Clarke; a Prevenção do Crime Através do Design Ambiental (CPTED), de C. Ray Jeffery; e o Policiamento de Pontos Quentes (Hot Spots Policing), de Lawrence W. Sherman e David Weisburd, arrematando com a participação comunitária através da Teoria da Eficácia Coletiva, de Sampson e Raudenbush. A partir do diagnóstico de dados empíricos e de um arcabouço teórico robusto, o trabalho propõe uma agenda para o endurecimento de medidas e a restauração da ordem, visando a proteção de um serviço essencial e a estabilidade da vida comunitária.

Abstract
This article analyzes the systemic attacks on buses in the São Paulo Metropolitan Region, focusing on the recurring stonings between June and July 2025. It is argued that such events present a form of systemic sabotage and reveal structural flaws in the cooperation between operations, security forces and public policies. The analysis is based on references from urban criminology, concepts from the Chicago School, such as: Environmental Criminology, through the thinking of Patricia L. Brantingham and Paul J. Brantingham (creators of the Criminal Pattern Theory); Situational Crime Prevention, by Ronald V. Clarke; Crime Prevention Through Environmental Design (CPTED), by C. Ray Jeffery; and Policing in Hot Spots, by Lawrence W. Sherman and David Weisburd, ending with community participation through the Theory of Collective Efficacy, by Sampson and Raudenbush. Based on the diagnosis of empirical data and a robust theoretical framework, the work proposes an agenda of persistence of measures and restoration of order, changing to the protection of an essential service and the stability of community life.

1. Introdução
Enquanto o governo estadual anuncia investimentos em tecnologia e policiamento ostensivo, o transporte coletivo da Grande São Paulo enfrenta uma grave crise no aspecto da segurança pública. Mais de 800 ônibus foram apedrejados na Região Metropolitana de São Paulo entre junho e julho de 2025. A ausência de uma resposta eficiente revela, uma certa fragilidade institucional diante de uma possível reconfiguração territorial movida pelos atentados sistemáticos aos coletivos e disputas empresariais.

Este artigo se debruça sobre o fenômeno dos ataques sistêmicos a ônibus, argumentando que a simples caracterização desses eventos como vandalismo é insuficiente. Propõe-se uma análise criminológica que os trate como uma forma de sabotagem sistemática, visando a desestabilização da ordem pública e a intimidação de comunidades inteiras. A abordagem é sustentada por um
diagnóstico empírico dos incidentes recentes e pela aplicação de teorias da criminologia urbana, que oferecem ferramentas precisas para compreender e combater o problema de maneira proativa e certeira.

2. Diagnóstico e análise: a aplicação da Criminologia Urbana
A complexidade dos apedrejamentos exige uma análise que vá além das motivações individuais, concentrando-se no contexto espacial, temporal e situacional dos crimes. Através das teorias da Criminologia Ambiental tentaremos estudar a lógica e/ou os objetivos por trás dos ataques.

2.1 Panorama empírico: junho–julho de 2025
Total de ônibus vandalizados: 813 veículos.

Dias com maior número de ataques: 59 ônibus em 7 de julho; 47 em 13 de julho.
Regiões mais afetadas:
Zona Sul de São Paulo, Osasco, São Bernardo do Campo.
Suspeitos detidos:
22 pessoas, incluindo servidores públicos e adolescentes.
Motivações investigadas:
protestos individuais, desafios virtuais, sabotagem
empresarial e retaliação faccional. Neste último caso, é no mínimo sensato, pensar
no PCC-Primeiro Comando da Capital.

2.2. Teoria do Padrão Criminal (Brantingham & Brantingham)
Patricia L. Brantingham e Paul J. Brantingham argumentam que o crime não ocorre aleatoriamente, mas segue padrões previsíveis na interseção de infratores, alvos e espaços. Esta abordagem é fundamental para identificar as áreas de risco e os momentos de maior vulnerabilidade, conforme demonstram os dados recentes.

• Identificação de Hotspots e Hot Times:
A análise empírica dos apedrejamentos em São Paulo, com base em dados de ocorrências policiais e reportagens, revelou um padrão noturno e de final de semana, com alta concentração em áreas específicas:

Hotspots (Locais mais atingidos): Avenida Cupecê (Zona Sul), Rodovia Raposo Tavares (Zona Oeste), Avenida Senador Teotônio Vilela (Zona Sul), Avenida Sapopemba (Zona Leste) e Avenida
Brigadeiro Faria Lima (Centro). A concentração de 80% das ocorrências nas zonas Sul (44%) e Oeste (34%) da capital reforça a tese da previsibilidade espacial.

Hot Times (Horários de maior ocorrência): A maioria dos ataques ocorre a partir das 22h, especialmente às quintas, sextas e sábados.

• Identificação de Geradores de Crime (Crime Generators): Os corredores de transporte de alta densidade e os grandes terminais, como os localizados na Zona Sul e Oeste, funcionam como "geradores de crime", pois concentram um grande fluxo de pessoas e veículos. Essa aglomeração, embora legítima, cria oportunidades e rotas de fuga para os criminosos, que utilizam o anonimato e a alta mobilidade para realizar os ataques. A proximidade desses locais com áreas de conflito e a ausência de policiamento local são catalisadores da criminalidade.

2.3. A Hipótese da Sabotagem: servidores e funcionários como atores da desordem
Uma das linhas de investigação mais promissoras, reforçada por dados recentes e prisões, aponta para a hipótese de sabotagem, onde os ataques seriam motivados por descontentamento institucional, disputas contratuais e retaliação interna ao sistema de transporte. A desordem, neste caso, não seria aleatória, mas um ato deliberado para causar prejuízo e desestabilizar o setor.

Motivações e contexto: As investigações ganharam força após a assinatura de um despacho para transferir contratos da empresa Transwolff para a Sancetur, uma transição que teria gerado insatisfação. A polícia investiga se os ataques seriam uma forma de protesto ou intimidação por parte de grupos ligados à empresa em transição.

Casos emblema e Modus operandi: O padrão dos ataques neste contexto é simbólico, não visando o roubo. Os alvos são os ônibus e, em alguns casos, vans do serviço Atende. O objetivo é a desordem e o prejuízo, não o lucro material. Duas prisões em particular ilustram esta hipótese:

Edson Aparecido Campolongo: Servidor público concursado e motorista da CDHU, ele confessou ter participado de 17 ataques em São Bernardo do Campo e na capital. Sua motivação, segundo
depoimento, era um "protesto" e o desejo de "consertar o Brasil". Ele foi preso em 22 de julho de 2025 e indiciado por depredação. O irmão de Edson, Sérgio Aparecido Campolongo, também foi preso por envolvimento em depredações.

Everton de Paiva Balbino: Preso em 9 de julho de 2025, ele foi indiciado por tentativa de homicídio após ferir uma passageira com uma pedra na Avenida Washington Luís, Zona Sul de São Paulo. A
polícia suspeita de seu envolvimento com funcionários de empresas em disputa por espaço ou sindicatos rivais. O fato de Everton ser filho de um motorista de ônibus reforça a possibilidade de vínculos com o setor.

2.4. O papel do Crime Organizado: a hipótese da Sabotagem como ação desestabilizadora

Em que pese, o fato que ainda não existem provas conclusivas do envolvimento direto do Primeiro Comando da Capital (PCC) nos ataques, a hipótese não pode ser descartada. Quem pode sustentar que essa organização criminosa não teria um interesse estratégico em descredibilizar o poder público paulista?

O governo do Estado de São Paulo tem atuado com grande empenho e rigidez no combate às atividades da facção, obtendo resultados significativos. Os ataques a ônibus, que geram caos e insegurança generalizada, poderiam representar uma forma de resposta? Neste raciocínio, ao criar um cenário de fragilidade e medo, o PCC buscaria:

Desgastar a imagem das autoridades: Criar a percepção de que o governo é incapaz de manter a ordem e garantir a segurança de um serviço essencial.

Intimidar a população: Demonstrar o poder da facção de paralisar a rotina da cidade, servindo como um recado direto ao estado.

Atingir economicamente o sistema: Os prejuízos causados às empresas de transporte, com a depredação de veículos e a queda na receita, podem enfraquecer o sistema e gerar oportunidades para a facção.

A sabotagem, nesse contexto, seria mais do que um ato de vandalismo; seria uma tática de guerra assimétrica para abalar as estruturas da sociedade e pressionar as autoridades. Mas, como dito, até agora não há provas do envolvimento dessa ORCRIM nos multicitados ataques.

2.5. Teoria da Prevenção Situacional (Clarke) e CPTED (Jeffery)
A Teoria da Prevenção Situacional, de Ronald V. Clarke, foca na redução de oportunidades para o crime, alterando o ambiente físico e o contexto do ataque. Esta teoria encontra seu complemento no conceito de Prevenção do Crime Através do Design Ambiental (CPTED), de C. Ray Jeffery, que propõe o uso do design urbano para inibir comportamentos criminosos.

Aumento de Risco:
As propostas para aumentar o risco de detecção e a probabilidade de identificação dos autores são cruciais. A implementação de tecnologias como câmeras de vigilância inteligentes com reconhecimento facial e sistemas de rastreamento por GPS nos ônibus, como os utilizados em Málaga, na Espanha, e em Jundiaí, no interior de São Paulo, aumenta a visibilidade e facilita as investigações. A presença de sensores ambientais e de sistemas de monitoramento em tempo real também contribui para uma resposta mais ágil.

Redução da Oportunidade (CPTED):
As intervenções nos "hotspots" podem ser orientadas por quatro pilares do CPTED:

1. Vigilância natural: Melhoria da iluminação nas paradas e corredores de ônibus, além da eliminação de obstáculos visuais, como muros e arbustos densos, que possam servir de esconderijo.

2. Controle natural de Acesso: Instalação de barreiras urbanas, como o alargamento de calçadas, que separam os passageiros da rua e dificultam o lançamento de objetos.

3. Reforço territorial: A manutenção constante dos espaços, eliminando lixo e grafites, envia um sinal de ordem e controle, de acordo com a Teoria das Janelas Quebradas (Wilson & Kelling).

4. Barreiras físicas e estruturais: A utilização de vegetação espinhosa ou cercas baixas em pontos críticos pode dificultar a aproximação e a ação dos agressores.

3. Propostas de enfrentamento: o Policiamento de Pontos Quentes (Sherman & Weisburd)

As teorias de Sherman e Weisburd, focadas no Policiamento de Pontos Quentes (Hot Spots Policing), oferecem uma metodologia de policiamento proativo e de endurecimento de medidas. A essência desta abordagem reside na concentração de recursos policiais nos locais e horários de maior incidência criminal.

3.1. Ação conjunta e estratégia de Policiamento Orientado
A ineficiência do combate aos apedrejamentos sistêmicos se deve, em parte, à ausência de uma ação integrada entre os órgãos de segurança. A solução passa por um protocolo claro de atuação:

Polícia Militar (PM): Responsável pela prevenção ostensiva. Seus esforços devem ser concentrados nos "hotspots" e "hot times" identificados, com reforço policial noturno de quinta a sábado. A simples presença de viaturas nesses pontos estratégicos aumenta o risco percebido e reduz as oportunidades para os ataques.

Polícia Civil (PC): Responsável pela investigação e desarticulação de grupos. A PC deve cruzar os dados dos boletins de ocorrência, investigando o modus operandi e as motivações por trás dos ataques. A suspeita de sabotagem empresarial e a identificação de servidores públicos envolvidos, conforme os dados empíricos, reforçam a necessidade de uma investigação aprofundada por parte do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC).

3.2. Fortalecimento da Eficácia Coletiva
A fragilidade da ordem pública se manifesta no medo da comunidade. A Teoria da Eficácia Coletiva, de Sampson e Raudenbush, sugere que a capacidade de uma comunidade de se organizar e intervir é vital para a prevenção do crime. As forças de segurança devem, portanto:

Engajamento comunitário: Estabelecer canais de comunicação com associações de bairro e com os motoristas de ônibus para coletar informações e fortalecer a confiança mútua.

Mobilização social: Criar um sistema de denúncia sigilosa, incentivando os moradores a participarem da solução sem se expor a riscos, além de trabalhar com líderes comunitários para fortalecer a coesão social em áreas de alto risco.

4. Conclusão: uma visão baseada na Criminologia
A arquitetura da intimidação, materializada nos apedrejamentos de ônibus, expõe uma grave fragilidade do tecido social e da ordem pública. No entanto, a análise criminológica moderna, especialmente as contribuições de Sherman e Weisburd, oferece um caminho otimista, mas firmemente ancorado em evidências.

A aplicação de uma política criminal baseada no Policiamento de Pontos Quentes pode restaurar a ordem e a segurança no transporte coletivo paulista. Ao invés de uma dispersão ineficaz de recursos, o Estado pode e deve concentrar sua força nos locais e horários em que o crime é mais provável de ocorrer. A identificação de "hotspots" e "hot times" não deve ser apenas um exercício estatístico, mas o motor de uma ação policial robusta e focada.

O endurecimento de medidas, por meio da presença policial estratégica e de investigações que desvendem as motivações por trás dos ataques (como sabotagem ou retaliação), é o único caminho para desmantelar essa arquitetura de medo. Ao agir de forma proativa e cientificamente orientada, as polícias Civil e Militar podem reverter o cenário de desordem e devolver a segurança aos  passageiros e motoristas. A restauração da ordem pública é um processo árduo, mas a Criminologia nos mostra que, ao concentrar os esforços nos pontos certos, nos momentos adequados, o sucesso é plenamente factível.

Referências bibliográficas
Brantingham, P. L., & Brantingham, P. J. (1993). Nodes, paths and edges: Considerations on the complexity of crime and the physical environment. Journal of Environmental Psychology, 13(1), 3-28.

Clarke, R. V. (1995). Situational crime prevention. Crime and Justice, 19, 91-150.

CNN Brasil. (2025, July 21). Polícia investiga relação entre ataque a ônibus em SP e sabotagem entre empresas.

DeepNewz. (2025, July 15). Over 700 buses attacked in São Paulo since June.

Jeffery, C. R. (1971). Crime Prevention Through Environmental Design. Sage Publications.

Kelling, G. L., & Coles, C. M. (1996). Fixing Broken Windows: Restoring Order and Reducing Crime in Our Communities. Free Press

Sampson, R. J., & Raudenbush, S. W. (1999). Systematic social observation of public spaces: A new look at disorder in urban neighborhoods. American Journal of Sociology, 105(3), 603–651.

Sherman, L. W., & Weisburd, D. (1995). General deterrent effects of police patrol in crime "hot spots": A randomized, controlled trial. Justice Quarterly, 12(4), 625-648.

Wilson, J. Q., & Kelling, G. L. (1982). Broken Windows. The Atlantic Monthly, March.

Jorge Luiz Bezerra

Jorge Luiz Bezerra

Sobre

É professor universitário, advogado, Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), delegado de Polícia Federal aposentado, especialista em Política Criminal, Segurança Pública e Privada, além de autor de diversos livros e artigos

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