Propriedade hackeada: como o Brasil virou um playground para fraudes imobiliárias digitais

Resumo
Este artigo analisa o crescimento das fraudes imobiliárias no Brasil, com foco em crimes digitais como falsificação de documentos de propriedade, estelionato eletrônico, phishing e golpes de aluguel. Examina o enquadramento legal sob o Código Penal, Código Civil e legislação registral, além de apresentar jurisprudência relevante e posições doutrinárias nacionais e internacionais. Propõe medidas preventivas e repressivas para conter o avanço desses crimes, destacando a necessidade de segurança jurídica, fiscalização digital e cooperação interinstitucional.
Abstract
This article examines the rise of real estate fraud in Brazil, focusing on digital crimes such as property document forgery, electronic fraud, phishing, and rental scams. It explores the legal framework under the Penal Code, Civil Code, and public registry laws, presenting relevant case law and scholarly opinions from Brazilian and international experts. The article proposes preventive and repressive measures to curb these crimes, emphasizing legal certainty, digital oversight, and interagency cooperation.
1. Introdução: O imobiliário e seus inquilinos indesejados
O mercado imobiliário brasileiro, tradicionalmente visto como um porto seguro para investimentos, tornou-se um verdadeiro hotel cinco estrelas para crimes digitais. Enquanto corretores honestos enfrentam burocracias e cartórios lentos, golpistas digitais ocupam propriedades alheias com a destreza de um hacker e a audácia de um magnata. A ironia é cruel: o sistema que deveria proteger a propriedade privada tornou-se cúmplice involuntário de sua violação.

2. Definições: fraude, estelionato e seus derivados digitais
- Fraude imobiliária: conduta dolosa que visa obter vantagem ilícita sobre bens imóveis, por meio de engano, falsificação ou manipulação de registros.
- Estelionato (Art. 171 do Código Penal): enganar alguém mediante artificio, ardil ou fraude para obter vantagem ilícita, podendo incluir falsificação de documentos, simulação de venda e uso de identidade falsa entre outros.
- Estelionato eletrônico: modalidade prevista após a Lei nº 14.155/2021, que agrava penas quando o crime é cometido por meio digital.
3. Golpes imobiliários mais comuns
- Fraude de escritura: falsificação de documentos de propriedade.
- Venda de posse como propriedade legal: uso de contratos simulados para enganar compradores.
- Phishing imobiliário: envio de e-mails falsos com ofertas fraudulentas.
- Aluguel inexistente: anúncios falsos em plataformas digitais.
- Venda de frações de terra em áreas protegidas: uso de mapas manipulados e registros falsos.

4. Enquadramento legal e jurisprudência relevante
Legislação Aplicável:
- Código Penal (Art. 171 e Art. 298–304 sobre falsificação)
- Código Civil (arts. 422 e 927 sobre boa-fé e responsabilidade civil)
- Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973)
- Lei nº 14.155/2021 (estelionato eletrônico)
Jurisprudência:
- STJ – REsp 1.658.086/SP: reconhece a boa-fé do terceiro comprador em fraude de escritura.
- TJSP – Apelação Cível 100XXXX-45.2020.8.26.0100: autoriza apreensão de bens familiares em fraude contra credores.
- STJ – HC 598.051/SP: valida prisão preventiva em caso de estelionato digital com falsificação de documentos.
- TJSP – Apelação Criminal 000XXXX-89.2021.8.26.0050: condena réu por venda simulada de imóvel com uso de identidade falsa.
5. Doutrina: vozes contra a Impunidade
5.1 Juristas brasileiros:
- Flávio Tartuce: defende reforço da boa-fé objetiva e transparência registral.
- Luís Roberto Barroso: destaca a importância da segurança jurídica como pilar democrático.
- Patrícia Peck: especialista em direito digital, propõe certificação eletrônica obrigatória em transações imobiliárias.
5.2 Juristas internacionais:
- Brigitte Unger (Holanda): alerta para o uso do setor imobiliário na lavagem de dinheiro.
- Samuel Birnie (Reino Unido): defende sistemas robustos de verificação digital e blockchain para registros públicos.
6. Prevenção e repressão: caminhos para o enfrentamento
6.1 Prevenção:
- Diligência prévia: checagem de matrícula, histórico do imóvel e identidade do vendedor.
- Verificação documental: uso de cartórios digitais e autenticação eletrônica.
- Segurança digital: proteção contra phishing e engenharia social. Lembrando que engenharia social é técnica de manipulação psicológica em que o golpista explora falhas humanas (confiança, curiosidade, medo) para fazer a vítima revelar informações confidenciais ou realizar ações que comprometam sua segurança. Enquanto que phishing é um tipo específico de ataque que utiliza engenharia social via meios digitais (e-mail, SMS, mensagens) para se passar por uma entidade confiável e levar a vítima a entregar dados sensíveis (login, senhas, dados bancários) ou acessar sites falsos.
- Monitoramento de registros: integração entre cartórios, Receita Federal e Polícia Civil.
6.2 Repressão:
- Legislação específica: tipificação clara de fraude imobiliária digital.
- Cooperação interinstitucional: integração entre MP, polícias, cartórios e COAF.
- Incentivo a denunciantes: proteção legal e recompensa por informações.
- Investigação especializada: núcleos de inteligência cibernética e forense documental.

7. Estatísticas nacionais de golpes imobiliários
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, os golpes patrimoniais cresceram de forma alarmante:
- Estelionato eletrônico subiu 408% em seis anos, passando de 426 mil para mais de 2,1 milhões de registros.
- Estima-se que 10% desses estelionatos envolvam transações imobiliárias, especialmente falsificação de documentos, venda simulada e aluguel inexistente.
- O Brasil registrou quatro golpes por minuto em 2024, com destaque para fraudes digitais ligadas ao setor imobiliário.
8. Estados com maior incidência de fraudes imobiliárias
Com base em dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e relatos de cartórios e plataformas digitais:
Estado |
Incidência estimada de golpes imobiliários (2024) |
São Paulo |
Muito alta – maior número absoluto de casos |
Rio de Janeiro |
Alta – foco em falsificação de escritura e posse |
Bahia |
Alta – destaque para fraudes em áreas protegidas |
Paraná |
Média – foco em aluguel falso e identidade falsa |
Distrito Federal- |
Média – venda simulada e phishing imobiliário |
8.1. Os 3 maiores golpes imobiliários no Brasil
8.1. Caso Alphaville-SP (2022)
- Local: Barueri, São Paulo
- Golpe: Venda de imóvel com escritura falsificada e identidade clonada
- Prejuízo: R$ 4,2 milhões
- Desfecho: Prisão preventiva dos envolvidos; comprador perdeu o imóvel
8.2. Caso Loteamento Fantasma-BA (2023)
- Local: Região Metropolitana de Salvador
- Golpe: Venda de frações de terra em área de proteção ambiental com mapas manipulados
- Prejuízo: R$ 3,6 milhões (mais de 80 vítimas)
- Desfecho: MP bloqueou bens dos golpistas; imóveis revertidos
8.3. Caso Aluguel Falso-PR (2021)
- Local: Curitiba
- Golpe: Anúncios falsos em plataformas digitais com exigência de pagamento antecipado via PIX
- Prejuízo: R$ 1,1 milhão (mais de 200 vítimas em 3 meses)
- Desfecho: Polícia Civil rastreou IPs e prendeu quadrilha especializada.
Esses dados mostram que o mercado imobiliário brasileiro, embora vital para a economia, está vulnerável a fraudes sofisticadas.
9. Cidades com maior incidência de fraudes imobiliárias em Alagoas e Pernambuco
Alagoas
9.1. Maragogi - Forte expansão do mercado turístico e imobiliário na região litorânea.
- Autuações recentes de falsos corretores atuando sem registro legal.
- Risco elevado de venda de posse como propriedade e fraudes em loteamentos.
9.2. Maceió - Capital do estado, com alta movimentação imobiliária e crescimento de plataformas digitais.
- Casos de estelionato eletrônico e falsificação de documentos em transações de aluguel e venda.
Pernambuco
9.3. Recife - Centro urbano com grande volume de transações digitais e contratos eletrônicos.
- Incidência de golpes envolvendo boletos falsos, locadores fantasmas e falsificação de identidade.
9.4. Ipojuca (Porto de Galinhas) - Região turística com valorização imobiliária acelerada.
Casos de venda irregular de terrenos em áreas de proteção ambiental e uso de mapas manipulados.
9.5. Olinda - Histórico de fraudes em imóveis tombados e venda simulada de propriedades com restrições legais.
Essas cidades concentram os principais focos de fraudes devido à combinação de valorização imobiliária, turismo, vulnerabilidades digitais e baixa fiscalização em transações informais. A atuação conjunta dos CRECIs de Alagoas e Pernambuco tem buscado coibir o exercício ilegal da profissão, mas os desafios persistem.
10. Conclusão: entre a inércia e a esperança
O sistema jurídico brasileiro ainda engatinha diante da sofisticação das fraudes imobiliárias digitais. A morosidade, a fragmentação institucional e a falta de fiscalização eficaz criam um ambiente fértil para golpistas. Como afirma Flávio Tartuce, “a segurança jurídica não é um luxo — é uma necessidade civilizatória”. E como reforça Brigitte Unger, “onde há opacidade, há oportunidade para o crime”. Apesar das falhas, há esperança: com tecnologia, cooperação e vontade política, é possível transformar o mercado imobiliário em um espaço seguro, transparente e justo.
Referências bibliográficas
Barroso, L. R. O Direito Constitucional e a Efetividade. Renovar, 2022;
Birnie, S. Digital Identity and Property Verification. Oxford Journal of Law & Technology, 2020;
Código Penal Brasileiro;
Código Civil Brasileiro;
CRECI-AL – Operação contra falsos corretores em Maragogi
G1 – Anuário de Segurança Pública 2025;
Garantti – Riscos digitais no mercado imobiliário;
Jamildo – Invasões a imóveis monitorados em Pernambuco;
Jurisprudência STJ e TJSP (consultadas via JusBrasil e Conjur);
Lei nº 6.015/1973 – Lei de Registros Públicos.
Lei nº 14.155/2021 – Estelionato eletrônico.
NR Advocacia – Fraudes Imobiliárias Mais Comuns;
- Peck, P. Direito Digital. Saraiva, 2021.
QuintoAndar – Golpes Imobiliários e Dicas de Prevenção
Unger, B. The Scale and Impacts of Money Laundering. Edward Elgar, 2017.
Tartuce, F. Manual de Direito Civil. Método, 20