Jorge Luiz Bezerra

A cegueira conveniente: por que a COP30 ignora o crime que assola o coração do Nordeste vulnerável?

.

Resumo
A presente análise argumenta que a COP30, prestes a ocorrer em Belém, configurasse como um espetáculo centrado na Amazônia — “celebridade” das conferênciasdo clima — enquanto deixa de fora, parcialmente, o drama cotidiano que corrói o Nordeste brasileiro. O semiárido queimando, o litoral alagoano patrulhado por milícias, a juventude recrutada por facções: tudo isso constitui um problema socioecológico intrinsecamente ligado à justiça climática e à adaptação resiliente. A violência organizada no Nordeste não é mera questão de segurança pública: é elemento estruturante de vulnerabilidade, mina a capacidade de adaptação, escapa aos sistemas de monitoramento climático convencionais e, portanto, exige visibilidade no debate ambiental global. Este artigo adota tom de denúncia para criticar a hierarquia invisível do ambientalismo — que distingue o crime “visível via satélite” (desmatamento amazônico) do crime “silencioso no sertão e na periferia”. Evidencia a conivência silenciosa dos poderes — estatal, corporativo, internacional — e desafia a COP30 a surpreender-se com as lideranças comunitárias do sertão e das periferias de Maceió. A conclusão é contundente: não haverá justiça climática para o Nordeste sem enfrentar o poder paralelo que sequestrou o futuro de sua juventude. Ignorar essa realidade é pactuar com a barbárie.

Abstract
This opinion piece argues that COP30, about to take place in Belém, is staged around the Amazon—the “celebrity” of climate conferences—while the daily drama eating away at Brazil’s Northeast remains largely invisible. The burning semi-arid hinterland, the Alagoas coast patrolled by militias, the youth recruited by gangs: these constitute a socio-ecological problem squarely linked to climate justice and resilient adaptation. Organized violence in the Northeast is not merely a matter of public security: it's a structural vulnerability, undermining adaptation capacity, escaping conventional climate monitoring and thus demanding visibility in the global environmental debate. Adopting a denunciatory tone, this article critiques the invisible hierarchy of environmentalism—differentiating the “satellite-visible” crime (Amazon deforestation) from the “silent crime” in the hinterland and periphery. It highlights the silent collusion of power—state, corporate, international—and challenges COP30 to give stage to community leaders from the hinterland and the peripheries of Maceió. The conclusion is clear: there will be no climate justice for the Northeast without confronting the parallel power that has kidnapped its youth’s future. Ignoring this reality is a pact with barbarism.

1. A celebridade e o parente pobre
A Amazônia ocupa o centro da narrativa climático-ambiental brasileira e até mundial, aparecendo em banners, satélites, discursos de chefes de Estado. Mas, se a Amazônia é a convidada de honra nas conferências do clima, o Nordeste – seu “parente pobre e inconveniente” – permanece relegado aos bastidores. O semiárido que queima, o litoral alagoano que se fragmenta sob controle de milícias, a periferia de grandes cidades à beira-mar que sofre marés altas, enchentes e ausência do Estado: tudo isso é menos “vendável” para a mídia global do que uma floresta tropical sendo devorada por máquinas.

Nesse jogo simbólico, a violência armada, o domínio de territórios pelas facções e a incapacidade de adaptação social no Nordeste não entram no palco — porque não são monitorados por satélite como o desmatamento e porque o discurso climático ignora que a “resiliência” exige segurança humana, não apenas infraestrutura.

2. Hierarquia do ambientalismo: visível vs. invisível
Há uma hierarquia implícita no discurso ambiental dominante:

• O desmatamento na Amazônia é visível, quantificável e “rentável” politicamente.

• O crime organizado no Nordeste é invisível nos relatórios climáticos tradicionais, ainda que constitua um câncer social que corrói a capacidade de adaptação da população.

Ambos são ameaças existenciais — mas só o primeiro recebe cobertura proporcional. O segundo é tratado como “segurança pública”, tema intrinsecamente político, logo muitas vezes excluído das mesas de negociação climática. No entanto, estudos apontam que o Nordeste se deslocou para a liderança nas taxas de homicídios e vitimização letal. (https://fpspne.org/a-novageogr...). Simultaneamente, a região é uma das mais vulneráveis à mudança climática, com secas, enchentes e deformações socio-ecológicas profundas. (https://seer.faccat.br/index.p...)

3. Conivência silenciosa: crime, vulnerabilidade e adaptação perversa
Quem compactua com essa invisibilidade?

• A sociedade que se acostumou à violência como rotina, e não questiona que a juventude nordestina viva sob cerco paralelo de facções.

• Políticos que fazem acordos de bastidor com facções ou permitem “governança” criminal em territórios vulneráveis.

• A comunidade internacional e o sistema climático que não enxergam o elo entre segurança pública e segurança climática. Vale citar que as mudanças climáticas são reconhecidas como multiplicadoras de insegurança — em especial por territórios que já convivem com fragilidade estatal. (https://igarape.org.br/wp-cont...)

Ao mesmo tempo, os dados mostram que, das 88 organizações criminosas no Brasil, 46 estão no Nordeste. (https://www.gazetadopovo.com.b...)

Qual é a adaptação possível num território onde milícias dominam, onde o Estado perde o monopólio da violência, onde o discurso de “economia de baixo carbono” se espraia sobre comunidades que já tremem de terror, e não de aquecimento global? A adaptação torna-se perversa — promessa de sustentabilidade num ambiente de opressão.

3.1. O Clima e o crime: a hipocrisia do equilíbrio ecológico num mundo em colapso social

Enquanto líderes mundiais se reúnem em conferências reluzentes para discutir o “equilíbrio climático”, bairros inteiros de cidades brasileiras — como Fortaleza, Belém, Recife e Salvador — vivem sob o domínio de facções que impõem um estado paralelo. Famílias são expulsas de suas casas, crianças crescem ouvindo rajadas de fuzil, e o poder público, acuado, limita-se a escoltar mudanças, não a combater o terror.

Como podemos falar em equilíbrio climático se o planeta humano está em colapso moral e social? O discurso da “neutralidade de carbono” soa quase cínico diante da neutralidade ética que permite que populações pobres sejam varridas de seus territórios sem que isso cause o mesmo alarde que uma queimada na Amazônia.

O aquecimento global não é apenas físico — é também humano. A desigualdade que ferve nas periferias é parte do mesmo sistema que aquece os oceanos. A violência organizada é uma forma de entropia social: desorganiza, desagrega e destrói o tecido coletivo que sustenta qualquer ideia de sustentabilidade.

Enquanto a COP30 promete “equilíbrio climático”, o Nordeste brasileiro mostra o outro lado da bala

Existem diversos relatos confirmando que Comando Vermelho (CV) e outras facções criminosas têm expulsado famílias de suas residências em bairros pobres de Fortaleza, Ceará, sob ameaças e ordens diretas. (Contexto Exato+3Portal meionews.com+3Diário do Nordeste+3). Por exemplo, no conjunto habitacional Cidade Jardim I, no bairro José Walter, famílias relataram terem recebido ultimatos para deixar seus apartamentos, e, na sequência, a Polícia Militar do Ceará (PMCE) realizou escolta dessas famílias durante a mudança.

4. Por que o Nordeste demanda palco na COP30
A COP30, que ocorrerá em Belém e exibirá a Amazônia como vitrine, corre o risco de reafirmar essa hierarquia de invisibilidade.

Mas se houver coragem, pode ser o momento de dar voz aos liderados comunitários do sertão, às mulheres ribeirinhas das periferias de Maceió – e tantas outras capitais nordestinas, nas quais o Comando Vermelho e o PCC, além de outras facções regionais - aos jovens que resistem na linha de frente entre crise climática e guerra do tráfico.

É urgente que:
• As mesas oficiais incluam representantes das periferias nordestinas e dos territórios semiáridos controlados por facções.

• Os infográficos apresentados não só mostrem rotas de CO₂ ou desmatamento, mas sobreponham mapas de homicídios, violência armada, ações das facções e vulnerabilidade socio climática.

• A agenda de “economia de baixo carbono” seja desdobrada junto de “segurança humana” e “justiça climática”: sem segurança, não há adaptação.

5. Opiniões de especialistas Internacionais
• Robert Muggah, cientista político canadense especialista em cidades frágeis, afirma que “cidades frágeis e zonas sob domínio do crime organizado exigem integração entre segurança urbana e adaptação climática” . (https://pt.wikipedia.org/wiki/...)

• Benjamin Lessing, professor da Universidade de Chicago, defende que a repressão “pouco inteligente” ao crime organizado está gerando caos e diminuindo a resiliência social — um alerta relevante para territórios vulneráveis. (https://www.camara.leg.br/noti...)

Nacionais

• Sérgio França Adorno, sociólogo, alerta que a violência letal no Brasil está cada vez mais concentrada em territórios de vulnerabilidade social e que isso mina a democracia e a adaptação coletiva.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/...)

• Juarez Cirino dos Santos, criminólogo crítico, sublinha que o crime organizado sobrevive à ausência do Estado e se entranha socialmente — condição que inviabiliza adaptações comunitárias resilientes. (https://pt.wikipedia.org/wiki/...)

6. Conclusão
A cegueira da COP30 quanto ao crime organizado no Nordeste não é mero descuido: é sintomática. Ela revela uma hierarquia do visível no ambientalismo, que privilegia o satélite que vê queimadas e desmatamento, mas mal enxerga o tiro à queima-roupa na favela ou no sertão. Esta cegueira impede a formulação de políticas de adaptação verdadeiras — políticas que precisariam contemplar segurança humana, combate ao poder paralelo, fortalecimento do Estado local, e mobilização comunitária. Cito Juarez Cirino dos Santos: “Sem o Estado socialamplo não há criminologia que dê conta do crime organizado” — e sem justiça de segurança humana não há justiça climática. Portanto: não haverá justiça climática para o Nordeste sem enfrentar o poder paralelo que sequestrou o futuro de sua juventude. Ignorar essa realidade é pactuar com a barbárie.

Referências bibliográficas
• ARAÚJO, A. R. Os impactos das mudanças climáticas no Nordeste brasileiro: vulnerabilidade socioecológica e adaptação. Fundação Sintaf, 2016.

• MARQUES, A. E. A.; COTRIM, T.; JESUS, C. R. “A nordestinação da violência no estado do Rio Grande do Norte”. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 18, n. 1, 2024.

• TEIXEIRA, R. L. P.; ARAÚJO, G. P.; SASSO, F. A. S. de. “Desastres socioambientais e injustiças climáticas no Nordeste do Brasil”. Colóquio – Revista do Desenvolvimento Regional, v. 22, n. 1, jan./mar. 2025.

• INSTITUTO IGARAPÉ. Clima e segurança na América Latina e Caribe. 2019.

• “Por que 46 das 88 organizações criminosas brasileiras estão no Nordeste”. Gazeta do Povo, 07/04/2025.

• LESSING, B. “Especialista critica uso ‘pouco inteligente’ da força e defende coordenação federal no combate a crimes mais graves”. Câmara dos Deputados, 02/10/2025.

Jorge Luiz Bezerra

Jorge Luiz Bezerra

Sobre

É professor universitário, advogado, Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), delegado de Polícia Federal aposentado, especialista em Política Criminal, Segurança Pública e Privada, além de autor de diversos livros e artigos

Arquivos

Selecione o mês