Mar do Caribe em chamas - a nova política dura dos EUA contra o narcoterrorismo e os dilemas para a América Latina
Resumo:
Os EUA lançaram uma política dura contra o narcoterrorismo no Caribe que combina designações terroristas, operações navais e interdições marítimas; a legalidade repousa em normas domésticas como o MDLEA e em doutrinas para alguns controversas como a “Unwilling or unable doctrine-UDD” (Incapacidade ou falta de vontade). An passant, o fundamento está ligado ao Artigo 51 da Carta da ONU (direito à autodefesa), mas, o estende a situações que envolvem atores não estatais. As condições são as seguintes: Estado vítima só pode intervir se o Estado territorial se recusar genuinamente (não estiver disposto) ou não tiver capacidade (não puder) para suprimir a ameaça originária do seu território. Esta doutrina, enfrenta críticas no direito internacional além de riscos políticos regionais.
Abstract:
The US has launched a tough counter-narcoterrorism policy in the Caribbean that combines terrorist designations, naval operations and maritime interdictions; legality rests on domestic norms such as the MDLEA and doctrines that are controversial for some such as the “Unwilling or unable doctrine-UDD An passant, the basis is linked to Article 51 of the UN Charter (right to self-defense), but
extends it to situations involving non-state actors. The conditions are as follows: Victim State can only intervene if the territorial State genuinely refuses (is not willing) or does not have the capacity (cannot) to suppress the threat originating from its territory. This doctrine faces criticism in international law in addition to regional political risks.
Introdução
A ordem presidencial de “acabar com o narcotráfico” ganhou forma operacional com a mobilização do USS Gerald R. Ford e de um Carrier Strike Group para o Caribe, acompanhada de strikes letais contra embarcações suspeitas e da designação de grupos venezuelanos como organizações terroristas. O gesto combina espetáculo geopolítico e instrumentos jurídicos, mas suscita questões centrais sobre soberania, proporcionalidade e direitos humanos.

Bases legais e doutrinárias
No plano doméstico norte-americano, o Maritime Drug Law Enforcement Act (MDLEA) amplia a jurisdição sobre embarcações sem nacionalidade ou com consentimento do Estado de bandeira, autorizando abordagens e processos penais em alto-mar. Internacionalmente, a doutrina “unwilling or unable” é invocada para justificar ações extraterritoriais contra atores não-estatais quando o Estado de origem não age; essa tese tem defensores e críticos intensos na literatura de direito internacional. Em contrapartida, o regime do alto-mar (UNCLOS) limita intervenções e prevê hipóteses restritas de right of visit; a Carta da ONU e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos impõem vetores normativos que restringem o uso da força e protegem o direito à vida.
Posicionamentos favoráveis ao uso da força contra o narcoterrorismo
Eis alguns autores estrangeiros que legitimam, em graus diversos, meios coercitivos calibrados são Gabriella Blum & John C. P. Goldberg, que analisam a justificativa da entrada sem consentimento sob prismas de necessidade e compensação; e Lucy V. Jordan, que discute a emergência da doutrina “unwilling or unable”(UUD) como prática estatal em evolução. Jordan ainda avalia se a doutrina em apreço alcançou status de direito internacional consuetudinário (costume), ou seja, se há prática estatal e opinio juris suficientes para legitimar o uso da força por um Estado quando o Estado-territorial não está disposto ou apto a neutralizar uma ameaça por atores não estatais. Conclui que, embora controversa, a adoção crescente da doutrina indica que seu uso estatal em legítima defesa se tornou “inevitável”.
Jens David Ohlin, defende que a UUD se justifica como forma legítima de força defensiva extraterritorial: mesmo violando temporariamente a soberania do Estado-hospedeiro, este fica vetado de reclamar — seja por sua cumplicidade, seja por sua incapacidade. Introduz a noção de “Sovereignty estoppel”(impedimento de soberania) como base conceptual da UUD. Em suma, o "impedimento de soberania" é um termo jurídico que impede um Estado de agir contra atos ou declarações anteriores que representam direitos ou situações de outro Estado.
No Brasil, vozes do campo da segurança pública e análises jornalísticas têm defendido respostas mais robustas diante da violência transnacional — inclusive propostas de cooperação e emprego de meios militares limitados — conforme debates públicos e relatórios sobre a presença do Tren de Aragua em mais de uma dezena de cidades em Roraima e a crise de segurança local.

Riscos jurídicos e geopolíticos
Operações que resultem em mortes e destruição de embarcações enfrentam obstáculos jurídicos: potencial violação da UNCLOS (United Nations Convention on the Law of the Sea) - Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - , proibição do uso da força sem autorização do Conselho de Segurança ou base de autodefesa, e obrigações de direitos humanos (Art. 6 do ICCPR) que exigem estrita necessidade e proporcionalidade.
No entanto — e esse talvez seja o cerne do argumento favorável — a escalada militar dos EUA pode funcionar como fator coercitivo e catalisador de mudança: cria um ambiente de risco elevado para redes transnacionais, pressiona estados hospedeiros coniventes/inertes, e força — via diplomacia, pressão militar e risco real — uma reconfiguração das redes do narcotráfico, ou pelo menos dificulta sua operação marítima. Em um contexto em que mecanismos tradicionais de cooperação internacional, interdição portuária ou repressão convencional se mostram insuficientes, o uso da força emerge como uma ferramenta — ainda que extrema — para restaurar um mínimo de governança e controle sobre rotas globais de tráfico.
Assim, embora a operação do USS Gerald Ford levante dilemas intensos, ela pode, sob interpretação restrita mas plausível, representar um esforço coerente de política de segurança internacional — uma demonstração de que, quando o Estado-hospedeiro falha, a comunidade internacional (ou um Estado que se perceba ameaçado) pode buscar meios extraordinários para defender a ordem e proteger populações.
Em síntese: a validade jurídica da ação é disputada, mas — diante da gravidade do problema, da persistência das ameaças e da ineficácia de meios convencionais — pode haver base para considerá-la legítima. A operação naval estadunidense, então, não apenas sinaliza determinação, mas reivindica um espaço de soberania ativa no hemisfério — especialmente se usada como último recurso, com transparência e, idealmente, em coordenação com outros Estados e mecanismos multilaterais.
Conclusão
Todos os autores citados defendem que, sob certas condições (ataque real ou iminente por não-estatais + incapacidade ou desinteresse do Estado-hospedeiro), o uso de força extraterritorial pode ser legítimo.
A versão de Blum & Goldberg traz um “viés teórico-normativo”: a UUD não é mero “atalho” de guerra, mas pode derivar — analogamente ao direito privado — em obrigações compensatórias e em uma leitura de soberania mitigada em certas circunstâncias.
Ohlin entende que tal legitimidade decorre de princípios bem-fundamentados: necessidade, proporcionalidade, dever de proteção, persistência do direito de legítima defesa, ou adaptação da ordem internacional às novas realidades (terrorismo, atores violentos descentralizados, controles estatais frágeis). Observamos que a campanha americana redesenha a segurança hemisférica: poder naval, designações terroristas e strikes navais são ferramentas poderosas, mas ainda assim, precisam, complementarmente de políticas domésticas de prevenção, governança e controle territorial. Para o Brasil, a escolha entre cooperação pragmática e defesa de soberania exige enfrentar, internamente, a expansão de facções como PCC, Comando Vermelho, e até do Tren de Aragua em Roraima — caso contrário, a dependência de “soluções externas” será apenas um paliativo que legitima manobras militares sem resolver as causas estruturais do narcotráfico.
Em arremate final, a UUD revela que o uso de força contra atores não-estatais, mesmo extraterritorial, pode ser juridicamente defensável quando o Estadohospedeiro se mostra “unable or unwilling”. Mas, o Brasil não deve ver isso como atalho permanente. A real soberania se conquista com instituições fortes, governança territorial eficaz e políticas públicas contínuas — só assim a violência organizada perde espaço de forma duradoura.
Referências bibliográficas
1. Blum, G. & Goldberg, J. C. P. The Unable or Unwilling Doctrine: A View from Private Law. Harvard International Law Journal, Vol. 63, No. 1 (Winter 2022), p. 63. versão online (SSRN): The Unable or Unwilling Doctrine: A View From Private Law, 1 Nov. 2021.
2. Jordans, Lucy V. (2014). A Doutrina do “Não Quer ou Não Pode” [Artigo em periódico acadêmico]. Commons Digitais do Colégio de Guerra Naval dos EUA .
3. Martin, Craig. (2019). Desafiando e refinando a doutrina "Indisposto ou incapaz" [Artigo em periódico acadêmico]. Vanderbilt Journal of Transnational Law .
4. Ohlin, Jens David — The Unwilling and Unable Test for Extraterritorial Defensive Force: Why Force Is Permitted against the Territorial State (2020)
5. Relatórios do RSIL (Research Society of International Law): Como Unable-or-Unwilling-Doctrine-and-the-View-from-Pakistan Conflict-Law-Centre.