Velha Companhia lança As águas: trilogia premiada que marcou o teatro paulistano chega ao livro

Por Paulo Cordeiro
Após 21 anos de trajetória ininterrupta e premiada, a Velha Companhia lança As águas, livro que reúne três de suas criações mais representativas. Escritas por Kiko Marques e já consagradas nos palcos com prêmios como Shell e APCA, as peças agora chegam ao público em edição pela Editora Javali, com prefácio de Maria Fernanda Vomero (USP) e posfácio de Daniele Sampaio. O lançamento acontece no dia 16 de setembro, às 19h, na Bibla Livraria, em São Paulo, marcando o primeiro lançamento de livro de teatro realizado no espaço, que rapidamente se firmou como referência na cena literária.
A publicação traz, em volume único, a trilogia composta por Cais ou Da Indiferença das Embarcações (2012), obra vencedora dos prêmios Shell, APCA e Aplauso Brasil de Melhor Autor; Sínthia (2016), vencedora do APCA de Melhor Direção e indicada ao Shell nas categorias de Melhor Diretor e Melhor Atriz para Denise Weinberg; e Casa Submersa (2019), peça que recebeu indicações ao Shell e APCA e foi considerada uma das melhores montagens do ano pela Veja SP. O livro oferece um mergulho nas memórias pessoais e coletivas do país, atravessando temas como Estado Novo, ditadura militar, violência política e apagamentos históricos — não pelos pormenores políticos em si, mas pelo modo como essa história é contada, nos detalhes da narração. São as histórias individuais que convocam a coletividade, revelando como o tempo histórico atravessa essas vidas.
Conforme assinala o editor Assis Benevenuto, “São três textos — textões mesmo, no sentido de serem muito bem fundamentados, muito bem construídos. É uma literatura dramática de fato, muito boa de ser lida. Quando falamos de teatro contemporâneo, muitas vezes nos deparamos com aqueles textos que exigem bastante do leitor. Eu, particularmente, gosto muito disso também: do apreço pela palavra, da relação que se estabelece, da construção, da ação, da imaginação, de tudo. Mas aqui há uma condução muito forte da palavra. São peças de três horas, algo que é raro de se ver. Há esse cuidado com a palavra, que se conecta também ao trabalho do Kiko na parte editorial. Vi nele um zelo muito grande nesse sentido — na revisão, na atualização de certas passagens”.
Fundada em 2003 por Alejandra Sampaio, Kiko Marques e Virgínia Buckowski, a Velha Companhia consolidou-se como uma das mais relevantes do teatro de grupo em São Paulo. Reconhecida com os principais prêmios nacionais, a companhia sempre trabalhou a partir de longos processos de pesquisa, aliando dramaturgia, debates, oficinas e ações em grupos periféricos. Seu compromisso com o diálogo entre arte e sociedade é marca de uma trajetória que soma espetáculos de grande repercussão, como Banco dos sonhos, Valéria e os pássaros e a própria trilogia As águas.
Esta publicação dá conta de um processo de cerca de 12 anos de pesquisa, preparação, encenação e criação dos textos dramatúrgicos. Em tempos de desvalorização e sucateamento do ofício teatral, Alejandra Sampaio, destaca que “esses três espetáculos foram produzidos com algum tipo de incentivo (editais e pesquisa). Do ponto de vista da companhia, trata-se de uma pesquisa que se alimenta dos recursos que sustentam esse convívio de um coletivo de artistas. E é esse processo que o Kiko orienta e direciona, entendendo os caminhos que encaminham a dramaturgia”. Ao longo de duas décadas, a companhia consolidou uma prática teatral que fomenta a dramaturgia contemporânea brasileira, preserva a memória cultural do país e, ao mesmo tempo, contribui para o desenvolvimento do setor, gerando empregos diretos e indiretos em produções que reúnem múltiplos profissionais das artes e fortalecem a comunicação com o público.
O livro nasce como um novo sopro, ampliando o contato do repertório da companhia com seu público e alcançando lugares onde os espetáculos ainda não chegaram, ativando novos encontros por meio das páginas da literatura. Virgínia Buckowski ressalta que a publicação do volume representa um marco de profissionalização para a companhia. Se antes o acesso a textos se restringia a versões em PDF, agora o livro, editado e disponível ao público, confere legitimidade e solidez ao trabalho dramatúrgico. Dessa maneira, a edição transforma a trajetória da companhia em patrimônio editorial, reafirmando sua presença no cenário cultural brasileiro.
Alejandra Sampaio comenta o simbolismo dessa publicação: “Minha escolha pelo teatro sempre foi a de uma arte fugaz: cada espetáculo termina, eu termino, e o que fiz também se desfaz. Mas existe algo maior do que nós, que é o próprio teatro. O teatro carrega essa característica da efemeridade. Que um texto possa se eternizar dessa forma é um testemunho — o meu, o do Kiko, o dos meus parceiros, do nosso tempo. Significa que não nos apagaremos completamente; nosso depoimento permanecerá mesmo após nossa passagem por aqui. Para o teatro, acredito que isso seja muito importante. Todo esse trabalho que o Kiko realiza seria um desperdício se se perdesse com o passar do tempo”.
Quanto à primeira publicação, Kiko Marques reflete que ainda não havia atentado para o universo da editoração teatral. “Somos pessoas de teatro. Fomos criando e colocando no palco, repetidamente. Quando a ideia da publicação surgiu, percebi que nem tinha a maioria dos textos finalizados como textos escritos, porque a encenação ia mudando, a gente ia mudando, simplesmente fazíamos teatro. Aquilo era uma ferramenta do teatro, o coração talvez, mas do fazer teatral. E então, transformar isso em publicação, tornar em objeto do mundo é algo muito poderoso. Tem um sentido artístico profundo: tudo que está ali — o trabalho da Alejandra, da Virgínia — é tão íntimo e pessoal, e, ao mesmo tempo, se torna público, se torna obra, se torna escultura, se torna livro, se torna dramaturgia lançada. É um lugar ao mesmo tempo assustador e bonito.”
O trabalho da Velha Companhia, para além do teatro e da literatura, também se aproxima do cinema. As três obras publicadas neste livro estão em processo de adaptação para o audiovisual. “Cais: os direitos da obra estão com Marco Ricca, que pretende transformá-la em filme ou talvez em série dirigidos por ele. Os direitos de Sínthia eram de Toni Venturi até seu falecimento, no ano passado; há alguns anos estávamos em processo de adaptação e criação de roteiro. Casa Submersa está com o roteirista Marc Bechar, que, junto comigo e com o diretor Aly Muritiba, desenvolve o projeto de uma série ou longa-metragem”, relata Kiko Marques. Vale lembrar que Denise Weinberg, atriz de Sínthia, é protagonista de O último azul, novo filme de Gabriel Mascaro, vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, atualmente em exibição em salas de cinema de todo o país.
O lançamento do livro integra o Projeto Empatia, contemplado pelo 43º Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo. Além da publicação, o projeto incluiu a temporada lotada de Cais ou Da indiferença... no TUSP, a pesquisa de adaptação de Crime e castigo de Dostoiévski, debates com especialistas como a Dra. Elena Vássina, reflexões dramatúrgicas em grupos periféricos e experiências sonoras na EMESP.
SINOPSES
Cais ou Da indiferença das embarcações | A peça narra as histórias de três gerações de uma família moradora da Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro, entre as décadas de 1930 e 1990 — sob o ponto de vista de um velho barco, em conversa com a poita à qual está amarrado.
Sínthia | Acompanhamos as trajetórias de Maria Aparecida e de seu filho caçula, Vicente — esperado por ela como uma menina —, desde seu nascimento, em 1968, durante os chamados anos de chumbo da ditadura militar brasileira, até um reencontro no Natal de 2013.
Casa submersa | Em 2018, após um encontro com uma figura marcante da história política do país, a bióloga Maíra parte em uma viagem sem volta, na qual encontrará não apenas suas próprias origens, mas também os abismos de sua família — e de sua nação.

SOBRE O AUTOR
Kiko Marques é ator, dramaturgo, diretor e professor de teatro. Formado pela Escola de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, em 1988, transferiu-se para São Paulo em 1993, onde fundou a Velha Companhia, da qual é diretor artístico. Ao longo de sua trajetória, desenvolveu um trabalho autoral, marcado pela pesquisa cênica e pela criação coletiva, reconhecido com prêmios como o Shell, a APCA e o Aplauso Brasil, entre outros.
SERVIÇO
Lançamento do livro As águas (Ed. Javali), de Kiko Marques (Velha Companhia)
16 de setembro (terça-feira), às 19h
Bibla Livraria – Praça Profa. Emília Barbosa Lima, 58, Vila Madalena, São Paulo – SP
(11) 3022-6683
A casa fecha às 21h30
Sobre o livro: 384 páginas| Valor promocional durante o evento: 50$
Link para pré-venda: https://www.