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14/02/2020 às 12:56

Sendo sincero: quando uma criança padece de fome, a sociedade está totalmente danificada

Sandro Melros - é advogado, escritor e professor 

Instagram: @sandromelros 
@lugares_da_literatura

Uma cena comumente presenciada de norte a sul do país: crianças procurando comida nas lixeiras. Em outros momentos, fácil encontrar bebês sendo nutridos por mingau feito apenas de farinha de mandioca com água, ao invés de leite materno. Da mesma forma, é frequente encontrar menores prostituindo-se por um prato de comida. Assim, ver crianças esperando serem atiradas sobras de lautos pratos dos restaurantes, mostra o quanto não há avanço algum a se festejar na história da humanidade. 

Triste o país que torce o rosto para não ver o que está tão à mostra: milhões de pessoas vivendo realidade de escassez de recursos econômicos mínimos para sobreviver. Não adianta virar as costas ao problema. Ele existe. É gravíssimo e pertence a todos nós. No caso da criança, tudo é mais perverso, posto que sequer tenha a verdadeira dimensão de todo o mal que a assola. Todavia, invariavelmente, termina por incorporar como natural as mazelas sociais e, assim, cresce em meio ao caos, com a única certeza: a vida é um lixo. 

Não torça sua face para isso. Mostre-se capaz de combater todo essa grave situação de condenação de tantos dos nossos à inanição, à privação de uma vida digna. Estamos passando por períodos nos quais as pessoas preferem a prece realizada em palavras às ações que oportunizem condições a fim de que todos possam existir com condições aptas a uma vida virtuosa. Vergonha é o nome disso. Tristeza em ser chamado de humano, ao ver tantos sem oportunidades de viverem junto aos seus, de um modo pleno, com as condições civilizatórias cada vez mais estáveis e disponíveis a todos indistintamente. 

Não desvie o seu olhar ao absurdo de ver crianças surgirem das lixeiras – reais e metafóricas – quando deviam estar nas escolas, exercendo sua cidadania, assim como os seus pais, os seus familiares, os seus vizinhos, por fim. Infeliz do país que coleciona miséria, que trata algumas pessoas com condecorações, títulos e honras ao mérito, quando desmerece a vida de boa parte dos seus. Está tudo errado, mas vive-se com isso. Pior, tem se a impressão de que a vulgarização de cenas em que a fome é a protagonista traz a bestialidade atrelada a toda sociedade. 

Ei, olha só, você também é culpado. Aliás, todos que compõem a sociedade têm efetivamente participação nesse morticínio físico e espiritual de indivíduos, em particular, crianças. Muitos adentram em seus “castelos religiosos” para retirarem um pouco do peso de suas corresponsabilidades em conviverem com essa situação durante toda a existência. Parem todos, por favor. Dividir essa conta é imperativo – e demasiado fraterno - para que seja possível reverter essa condição perversa contra iguais: humanos, Faz-se necessário aflorar a solidariedade - que teima em bater-nos à porta. Não se recua em fazer o bem. Não se envergonha em enfrentar os poderosos – donos do capital que vampirizam a economia nacional – em nome de um sentimento maior, qual seja a proteção aos mais frágeis socialmente, principalmente, as crianças deste país.

Como se consegue olhar o prato farto de um filho, sabendo que muitos sequer têm o equivalente ao mínimo para sobreviver, para desenvolver-se fisicamente? Como se sentir isento diante de tamanha atrocidade? Sim, é cruel, é infame, é desleal, inclusive, ante a situação de que há menores pagando essa conta com as próprias vidas. Essa crença de que há superioridade na humanidade torna-se discurso vazio no caso em tela. A existência é nula quando vivemos no egoísmo pálido e frio. Viver transcende o mundo físico que se apresenta. Não se pode crer que tanta soberba se resuma a um monte de tripa que fala e que luta apenas – e tão somente - por dinheiro. Deve haver mais que isso na história dos seres humanos. Precisa-se crer que o indivíduo exista para ser maior do que seu egoísmo. Só acontece transformação social a partir do momento que se enxerga a possibilidade de viver em sintonia com o outro. Melhora-se com o outro. Alivia-se, portanto, a vida do outro. Assim, a humanidade se solidifica, apresenta-se na sua pretensa grandeza. 

Não se rechaça o outro, principalmente, quando este se encontre em situação vulnerável. Sendo sincero: não se leva nada desta vida, a não ser o bem que realizamos. Não há como carregar tesouros acumulados quando se fenece. Sabe-se plenamente disso, mas a lógica irracional ata-se em acumular, empilhar, amontoar-se de joias, dinheiro, títulos de capitalização, entre outras riquezas materiais. Nesse contexto, explorar tende a ser o compromisso maior àqueles que priorizam a fortuna. Explorar é não se importar com a vida do outro, ao menos da maneira civilizatória que se espera, com igualdade. Chega a ser insano esse comportamento predatório entre as pessoas, em que alguém vive bem e outros sequer têm o mínimo para sobreviverem dignamente. Vergonhoso comportamento social. 

Tudo realmente acaba. Às vezes, antes mesmo que a vida seja preenchida desses ganhos materiais. Mas, há saídas a essa conjunção de selvajaria, no que diz respeito à miséria. Pode-se vislumbrar uma existência confortável para si e para o outro, mesmo que utópico, predispõe-se como a grande redenção humana. 

Sendo cruamente sincero: é atroz presenciar um adulto sendo afligido pelo mal da fome. No entanto, quando uma criança perece sem comida, a barbárie já se instalou profundamente na sociedade, Trata-se de uma cena afrontosa, desleal com quem não consegue lutar pela própria sobrevivência. É um flerte da humanidade com a monstruosidade latente em cada indivíduo. Um ultraje ver meninas e meninos na rua buscando a chance de disputar restos de alimentos, a fim de nutrir seus corpos débeis. Reverter essa infâmia tem de ser uma reflexão individual para que – logo em seguida - a coletividade consiga realizar mudanças implacáveis de banir a fome dos espaços infantis nesses rincões do país. É um esforço que necessita ser incansável e plural. Deve ser, prioritariamente, daqueles que têm mais condições de auxiliar, mas a ajuda de todos indistintamente é imprescindível, a fim de formar uma rede de proteção à infância desse país. 

Talvez, em algum tempo, haja mais cidadãos que não precisem torcer seus rostos. A ilusão de vermos crianças rindo em suas inocentes vidas compensa toda e qualquer quimera de que o homem viverá a suposta perfeição de sua humanidade. Há que aguardar justiça social, Precisa-se pensar que a humanidade não ancorou em um depósito de individualismo cínico e socialmente disforme. Em nome de uma sociedade fraterna, necessitasse acreditar em dias melhores para todos

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