Por Roberto Amorim
Numa avenida tomada por bares e restaurantes que apostam na diversidade gastronômica e na repetição de sucessos do momento, um espaço ousa quebrar essa regra sonora nas tardes de sábado. Das 13h às 17h, o Nosso Boteco, na famosa e movimentada Amélia Rosa, bairro Jatiúca, privilegia a excelência do samba e do chorinhotocado e cantado em Maceió.
Não é apenas uma tarde de música acompanhada de bebidas e petiscos. São encontros, reencontros, abraços, lembranças, refrões emocionados, danças em gestos suaves. É um profundo respeito aos instrumentos musicais e ao legado deixado por compositores e intérpretes comoCartola, João Nogueira, Adoniram Barbosa, Ernesto Nazareth, Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga. É, principalmente, uma experiência com a música brasileira enraizada no século 19 que os mais jovens deveriam sentir.
Por volta das 13h30, uma senhora de sandálias reluzentes, blusa florida, cabelo impecável e batom vermelho-brilhante, aumenta o balanço das pernas ansiosapelo início da música. Siqueira Lima (trompete), Wellington Pinheiro (cavaquinho e bandolim), Joacaz Paz (violão sete cordas) e Ramiro Júnior (pandeiro e percussão) ajustam os instrumentos com impressionante zelo. A orquestra do projeto Samba-Choro, comandado pela experiente cantora e produtora cultural IsmairMartins, sabe que o público é exigente, animado e fiel aos ritmos que praticamente desapareceram das rádios, dosshows e das comemorações cotidianas.
Antes do primeiro acorde, a chegada de uma mulher alta, de vestido estampado de flores vermelhas e hipnótico sorriso chama atenção da plateia. Ela começa a ser cumprimentada por clientes, garçons, cantora e músicos.Também é a responsável por muitas selfies. É a pianista Selma Brito, de 83 anos, com vitalidade e carisma invejáveis. Há quatro anos, desde a primeira apresentação do Samba-Choro, ocupa uma das mesas em frente ao espaço que se torna palco. São quase 200 apresentações acompanhadas de perto, numa mesa simples de boteco rodeada de amigos, fãs e artistas convidados.
Selma Brito, que não gosta do substantivo feminino“dona”, é incisiva. “É uma tarde de vida, de boa música, de amigos; uma muvuca do jeitinho que eu gosto”. E avisa: “daqui vou para mais três compromissos musicais e só chego em casa perto da meia-noite”.
A música começa e minutos depois a maioria das mesas está ocupada por homens e mulheres de cabelos pretos, grisalhos e brancos. Estilos, profissões e idadesdiferentes. Não importa. Estão em busca do samba e do choro. Muitos se conhecem há décadas, outros firmaram amizade ali mesmo entre um sábado e outro; ou durantemuitos sábados seguidos. A empolgação a cada encontro e os brindes que se seguem comprovam a ligação musical.
O celular não é protagonista nas mesas e não ofusca a música. Serve apenas para registrar a beleza dos instrumentos em plena ação; a emoção da cantora Ismair;a animação do salão - principalmente durantes os refrões de clássicos como “Preciso te encontrar” (Cartola), e “Saudosa Maloca” (Adoniran Barbosa). Em momentos como estes, o público já está a todo vapor: expressões de uma felicidade conquistada, cantoria de braços abertos, beijos afetuosos e corpos embalados por acordes e palavras ouvidos há mais de meio século. Quando começa “Falando de Amor”, de Tom Jobim, é possível ver discretas lágrimas pelo prazer de viver, reviver e continuar vivendo. Os apressados transeuntes são contagiados e param para um rápido e prazeroso descanso sonoro.
Do fado a Cazuza
O repertório segue por Gilberto Gil, Dominguinhos e João Nogueira na voz de Ismair; ou na voz dos instrumentos criada pelo impressionante talento e maestria dos músicos. É fascinante acompanhar tão de perto a execução instrumental de clássicos da música brasileira. “É uma beleza divina”, “são de outro mundo”, “incríveis”, são algumas das definições que se pode ouvir.
Numa roda de samba e choro como essa todos são bem-vindos e Ismair Martins convidou a cantora Irina Costa. Angolana, radicada em Alagoas, ela deu amostras da sua potente voz em clássicos do fado como “Coimbra” e “Nem as paredes confesso”. Em alguns momentos, obandolim de Wellington Pinheiro e voz de Irinahipnotizaram o espaço, seguido de uma urgência para fotografar e filmar. “Não imaginava sentir tanta emoção. Filmei todo para assistir várias vezes e enviar para minhas amigas”, disse a professora aposentada Nália Maria, que costumava passar as tardes de sábado em frente àtelevisão. “Minha família já sabe que se marcar algum compromisso neste dia e horário vou faltar. Meu sábado de samba e choro é sagrado”.
E as vozes vão se misturando. Irina faz dueto com Ismair. A cantora Wilma Miranda, que estava por ali, é puxada para o palco improvisado. Reluzente e de voz penetrante, ela fez todo mundo cantar com interpretações de “Ronda” (Paulo Vanzolini), “Virgem” (Marina) e“Sentimental Demais”, de Evaldo Gouveia de Oliveira eimortalizada por Altemar Dutra em 1965. Microfone aberto é a vez de Chico Lima. Fã do Samba-Choro, ele celebra a tarde com canções de Tim Maia. O fim da tarde vai se aproximando com Ismair atendendo aos pedidos de “mais um” e cantando “não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar...”.
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