Primeiras palavras
A tendência de alguns países e mesmo estados norte-americanos de liberação da maconha vem criando grandes e infindáveis polêmicas. Por aqui, em terras tupiniquins não é diferente. A ponto de correntes ditas de vanguardas e libertárias defenderem o uso da maconha, como uma espécie de “cachimbo da paz” para reunir os aficionados em alegres tertúlias ou convescotes em torno da “erva”. Nesse MMM (Maravilhoso Mundo da Maconha) ninguém pergunta de onde veio a droga, quem trouxe, quanto foi pago ou quantos foram presos ou mortos para que o cânhamo chega-se até aquela “roda de descontraídos fumantes”.
Por outro lado, o consumo de drogas e sua associação à criminalidade, noticiada como uma nova “epidemia social”, tem conclamado urgência nas respostas do poder público.
Por esta razão, desenvolvemos estas linhas, no afã de provocar mais uma reflexão sobre este tormentoso e sempre atualíssimo tema.
Visão legal
No Brasil vigora a Lei nº. 11.343/2006, influenciada pelas tendências internacionais de prevenir mais e reprimir menos, a Lei teve como principal alteração em relação à anterior a instituição de penas mais brandas para usuários e mais duras para traficantes.
Características principais da lei:
1. Alterou a expressão “substância entorpecente” por “drogas” (conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde);
2. Adoção do critério da Proporcionalidade, ou seja, diferentes tipos penais e diferentes penas para grandes, médios ou pequenos traficantes, pois antes, era a mesma pena na Lei 6.368/76, fosse a quem comercializava, induzia, financiava ou colaborava como informante;
3. Continua a norma penal em branco, uma vez que o conceito de drogas é aquele constante em Portaria da SVS/MS Nº 344/1998 (Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde). Assim, a cola de sapateiro, não é droga para fins de penalização por esta lei, pois não está arrolada no rol do Ministério da Saúde (podendo ser enquadrado no ECA-Estatuto da Criança e do Adolescente, caso haja menores envolvidos);
4. Tratamento do usuário (art. 28). Não se penaliza mais com uma sanção privativa de liberdade, por isso, havia discussão doutrinária se continuava sendo crime ou não: todavia o STF adotou a corrente que sim, é um ilícito penal, deste modo, o art. 28 continua sendo crime. Por via de consequência, a droga não foi legalizada, não acontecendo, pois a “abolitio criminis” (é uma forma de tornar atípica penalmente uma conduta até então proibida pela lei penal).
5. Aumento da aplicação de multa;
Como entendem os tribunais:
O legislador excluiu do preceito secundário da norma as sanções privativas de liberdade, fixando penas educativas e restritivas de direito, foi gerado um grande conflito, que foi solucionado pelo STF, que pontuou: sim há crime, havendo somente à exclusão das penas privativas de liberdade (detenção ou reclusão), e não abolitio criminis (forma de tornar atípica penalmente uma conduta até então proibida pela lei penal).
A Suprema Corte diz que houve somente a despenalização e a doutrina majoritária entende que ocorreu a despenalização ou a descarcerização. Não adveio a descriminalização do art. 28 caput. Continua sendo considerado crime pela lei brasileira.
Em que pese o caráter aparentemente liberalizante (posto que extinguiu a pena de prisão para usuários), a Lei ainda considera o uso como crime e mantem todos os procedimentos legais para seu tratamento. Amiúde, usuários de drogas quando flagrados devem ser conduzidos à delegacia mais próxima, assinar termo circunstanciado e comprometer-se a comparecer em audiências judiciais.
Carolina Grillo, Frederico Policarpo e Marcos Veríssimo (2011) observaram em pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro, que estava ocorrendo uma queda nos registros de ocorrência por flagrante de usos de droga e um aumento nos casos registrados como tráfico. Os estudiosos entendem que o abrandamento para a pena de usuário teria sido seguido da negligência do judiciário em tratar a questão, pelo fato de considerar agora fora da competência da justiça criminal. Todavia, eles mostram como a redução dos processos legais parece ter aumentado o poder de policiais em negociar os flagrantes de consumo de drogas (por exemplo, pedindo suborno para usuários com maior poder aquisitivo e agindo com mais violência frente aos usuários mais pobres). (GRILLO, Carolina C.; POLICARPO, Frederico; VERISSIMO, Marcos. “A “dura” e o “desenrolo”: efeitos práticos da Nova. Lei de Drogas no Rio de Janeiro. Revista de Sociologia e Política. 2011. V. 19, nº. 40, pp. 135-14).
Como registram os autores, o “X” da questão não é apenas registrar ou não o flagrante, mas tipificá-lo em tráfico ou abuso de drogas. A barganha criminosa feita por policiais corruptos é, infelizmente, uma constante em todos os estados e não apenas na capital carioca.
No que toca a forma como essa desigualdade se manifesta em relação ao consumo, o Prof. Gabriel de Santis Feltran da Universidade São Carlos/SP pesquisou que: nos ambientes das classes média e alta, é muito comum que o consumo de drogas ilícitas esteja em boa parte desvinculado, como relação social, do tráfico profissional.
Desta forma, o consumo não passa pela conexão com a violência que o caracteriza internamente, ou em suas relações com a polícia. A jovem analista de sistema que trabalha na Av. Faria Lima em São Paulo ou na Fernandes Lima, em Maceió, quer “cheirar” cocaína no final de semana, compra alguns “pinos” (doses) de seu colega, que não vive disso, mas que adquiriu uma “parada” (pequena porção) de outro colega para dividir com conhecidos. Esse, por sua vez, tem o contato de alguém que conseguiu uma boa quantidade, telefonou e recebeu um pouco no trabalho, ou passou de carro rapidamente por alguma “boca, biqueira” (ponto de venda de drogas).
Em rigor, quem enviou a droga, ou quem trabalha na “boca”, efetivamente, fatura com o tráfico. O chefe da “boca” ganha mais, e assim sucessivamente.
O que os olhos não vêem, a consciência não sente?
O fundamental é registrar que a distribuição percorre por várias fases antes de chegar ao consumidor final, que é aquele que aspira o “pó” (cocaína) já está bem distante, no plano das relações sociais, daquela pessoa envolvida na violência do mundo da mercancia maldita. O usuário, nestas conjunturas, isola-se da rede direta do tráfico de drogas, dos interesses que o disputam e da violência que o cerca. Excluído deste “octógono”, ainda que simbolicamente, o consumidor sentisse despojado da carga de violência que caracteriza o tráfico. É a velha e hipócrita situação na qual parafraseando a célebre frase: “o que os olhos não vêem o coração não sente”, temos: o que os olhos não vêem, a consciência não sente.
Efetivamente, não é assim, que a droga ilícita é percebida nos bairros periféricos, onde ela é igualmente consumida. Talvez, porque não são os mesmos partícipes que operam a distribuição. Também não é da mesma forma que se vivencia, nestes arrabaldes, a complexa relação que envolve o universo do abuso e tráfico de drogas.
Nas franjas da cidade, se um jovem fuma maconha recreativamente, com certeza que suas afinidades sociais vão envolver diretamente indivíduos que vivem, ou abiscoitam fração expressiva da sua renda, do comércio de drogas ilícitas. Estas conexões sociais estarão caracterizadas pela violência – dos traficantes, dos indivíduos vinculados a eles, que participam de outras atividades criminosas, de dependentes, sem esquecer da polícia.
Em suma, se um jovem fuma maconha, por exemplo, é quase certo que em alguns momentos da vida se relacionará com pessoas que já tiveram passagem pela polícia ou que mesmo incólumes praticaram crimes. A polícia, enquanto detentora do poder de enquadrar, atua a partir de estereótipos.
Roubos, homicídios, assaltos, furtos, sequestros e tráfico de drogas são as atividades criminosas, que integram o círculo do crime, mas não o exaurem. A senda do crime abrange várias formas de vida, bem como tribos e percepções de mundo, “jeitinhos” (ilegalismos populares que compõem o repertório de vida das camadas mais pobres) que concorrem tenazmente por seus espaços.
Carolina Grillo, em sua tese de Doutorado junto a UFRJ (Coisas da Vida no Crime. Tráfico e roubo em favelas cariocas: RJ.2013), pesquisando jovens cariocas de classe média que fazem parte das redes de tráfico de drogas “da pista” (em paralelo aos que traficam “no morro”), revela que há um repúdio ao emprego da violência. Como demostra a autora, as pessoas estudadas não acatam o etiquetamento como “traficante”, embora se reconheçam praticantes de atividades mercantis rotuláveis como tráfico de drogas.
Pândego não é? Imagine que não demora e esses “comerciantes” vão pedir para recolherem a Previdência Social com vistas a aposentadoria.
Ainda para Carolina Grilo, o rechaço dessa etiqueta se dá pelo reflexo midiático do termo “traficante” associado como o “bandido do morro”, do qual eles fazem questão de se diferenciar. Os “comerciantes de drogas” que operam no “asfalto” são beneficiados em comparação aos seus similares pobres, por serem privilegiados pela condição de possivelmente escaparem dos processos penais.
O etiquetamento ou labeling, também conhecido como a teoria da rotulagem entende que os comportamentos dos indivíduos pode ser determinados ou influenciados pelos termos usados para descrevê-los ou classificá-los. Por exemplo, “fulano tem cara de bandido”, “cicrano tem cara de anjo”, como se bandido tivesse cara, ou se o fato de ser bonito ou bonita, livra-se a pessoa de ser um tremendo mau caráter!!
O Labeling Approach ou Teoria do Etiquetamento Social demonstra que as condutas tuteladas pela lei penal não seguem uma lógica, tal constatação está muito distante do saber dogmático e mais próximo do entendimento crítico dos sociólogos.
Neste curso, sabemos que furtar é crime, porém, se o furto for praticado por uma pessoa da classe média alta que poderia facilmente comprar o bem subtraído, seria considerado distração, e até uma doença (cleptomania- compulsão de furtar) etc.
Isto demonstra que o criminoso é nomeado pelas características do meio no qual está inserido, e não pelo comportamento criminoso. O sistema penal não combate à criminalidade, mas confere rótulos através de uma convenção discursiva.
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