Introdução
O Estado do Rio de Janeiro enfrenta um paradoxo alarmante no cenário da segurança pública brasileira. Enquanto dados recentes, como os apontados pelo Atlas da Violência, indicam uma tendência de redução na taxa nacional de homicídios, a realidade fluminense segue um caminho divergente, marcado por um aumento nos assassinatos e uma persistente e crescente violência contra as mulheres. Em 2023, o estado registrou 4.292 mortes violentas intencionais (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte além das mortes por intervenção policial), um número que expõe a complexidade e a urgência da situação. No âmbito nacional, embora o número total de homicídios tenha caído, os homicídios de mulheres apresentaram um aumento de 2,5% entre 2022 e 2023, totalizando 3.903 vítimas em 2023, um fenômeno que certamente tem reflexos preocupantes no Rio de Janeiro. Este artigo busca fazer uma singela análise essa conjuntura sob as lentes da criminologia e do direito, propondo um caminho integrado para a mitigação da violência, com especial atenção à proteção das mulheres.
O panorama estatístico: um alerta vermelho
Os números da violência no Rio de Janeiro são mais do que estatísticas; são vidas perdidas e comunidades aterrorizadas. Os 4.292 assassinatos registrados em 2023 no estado (considerando a soma de homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte) representam uma média de quase 12 mortes por dia. Essa cifra, aliada à tendência nacional de aumento dos homicídios femininos, acende um sinal de alerta máximo.( O Atlas da Violência 2024, publicado pelo Ipea e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que em 2023 houve uma queda no número de homicídios no Brasil, atingindo o menor valor em 11 anos, com 45.747 casos. No Rio de Janeiro, houve um aumento, com 4.292 homicídios em 2023, em comparação com 3.762 em 2022, segundo o Portal G1).
A violência no Rio não é homogênea, concentrando-se em territórios específicos, muitas vezes marcados pela pobreza, pela ausência de serviços públicos efetivos e pela disputa entre facções criminosas e milícias. A compreensão dessa distribuição espacial e das dinâmicas sociais subjacentes é crucial para qualquer intervenção eficaz.
Lentes criminológicas para decifrar e agir
Diversas escolas criminológicas oferecem subsídios valiosos para entender e combater a criminalidade no complexo cenário carioca. Para um plano de ação, especialmente emergencial, algumas se destacam:
1. Ecologia Criminal (Escola de Chicago): Teóricos como Clifford Shaw e Henry McKay demonstraram como a desorganização social – caracterizada por pobreza, instabilidade residencial e heterogeneidade populacional – em determinadas áreas urbanas se correlaciona com altas taxas de criminalidade. No Rio, isso se aplica diretamente à análise das favelas e periferias, sugerindo que intervenções eficazes devem ir além do policiamento, atuando na reconstrução do tecido social e no fortalecimento das instituições locais. A identificação de “hot spots” (áreas de concentração criminal) é uma ferramenta direta derivada dessa abordagem.
2. Teoria das Atividades Rotineiras: Proposta por Lawrence Cohen e Marcus Felson, esta teoria postula que o crime é uma função da convergência entre um ofensor motivado, um alvo vulnerável e a ausência de um guardião capaz. No contexto do Rio, isso direciona para estratégias de prevenção situacional: melhorar a iluminação, aumentar a vigilância (policial e comunitária) em locais e horários de risco, e reduzir as oportunidades para o crime. Ações que dificultem a circulação de armas ilegais e criar campanhas de conscientização para evitar a ostentação de bens que atraiam criminosos (como em roubos de rua) alinham-se a essa perspectiva.
3. Teoria da Escolha Racional e Prevenção Situacional: Com raízes no pensamento clássico de Cesare Beccaria e desenvolvida por autores como Ronald V. Clarke e Derek Cornish, essa abordagem assume que o criminoso calcula riscos e benefícios. A estratégia, portanto, é aumentar os custos e reduzir as recompensas do crime. Isso se traduz em policiamento ostensivo para aumentar o risco percebido de captura, celeridade no sistema de justiça (aumentando a certeza da punição) e medidas de “Target Hardening” (tornar alvos menos acessíveis ou atraentes). Embora focadas no longo prazo, teorias como a da Tensão (Robert Merton, Robert Agnew), que liga o crime à frustração por metas não alcançadas, e a Criminologia Crítica, que aponta para as desigualdades estruturais como raiz da violência, são essenciais para lembrar que soluções duradouras exigem abordar as causas socioeconômicas profundas da criminalidade no Rio.
Propostas integradas: o Direito e as políticas públicas como ferramentas de transformação
A redução sustentável da violência exige um approach variado, que combine inteligência policial, prevenção, ação social e um sistema de justiça criminal eficaz e responsivo, com forte amparo legal.
Eixo 1: Redução da criminalidade violenta geral • Policiamento Orientado por Inteligência e Problemas: Focar recursos nas áreas de maior incidência de crimes (hot spots) e nos grupos criminosos de maior impacto na letalidade, utilizando análise de dados e inteligência policial.
• Prevenção Situacional (CPTED-Crime Prevention Through Environmental Design): Intervenções urbanísticas que melhorem a visibilidade, o controle de acessos e o sentimento de pertencimento em espaços públicos.
• Fortalecimento da investigação: Aumentar a capacidade técnica e humana das delegacias, especialmente as de homicídios, para elevar taxas de elucidação e combater a impunidade. Claro que não se pode esquecer o gravíssimo problema do tráfico de drogas no Rio com todas suas ramificações e repercussões, mas este tema será objeto de outro texto mais minudente.
• Controle de armas: Políticas rigorosas de controle, rastreamento e apreensão de armas de fogo ilegais.
• Policiamento Comunitário e Mediação de Conflitos: Construir pontes entre polícia e comunidade para aumentar a confiança, a colaboração e prevenir a escalada de conflitos menores.
Eixo 2: Enfrentamento urgente à violência contra a mulher
• Aplicação rigorosa da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006): Garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, com fiscalização (Patrulhas Maria da Penha) e monitoramento eletrônico de agressores de alto risco.
• Expansão e qualificação da rede de atendimento: Ampliar o número e a capacidade das DEAMs (Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher), Centros de Referência e Casas Abrigo, assegurando atendimento humanizado, multidisciplinar e acessível em todo o estado.
• Protocolos de risco e atuação policial: Implementar protocolos claros para avaliação de risco em ocorrências de violência doméstica e garantir uma resposta policial adequada e protetiva.
• Educação e Prevenção: Campanhas de conscientização contínuas e programas educacionais que abordem a igualdade de gênero e combatam a cultura do machismo desde a base.
• Foco na autonomia econômica: Programas que facilitem a independência financeira de mulheres em situação de violência.
O papel crucial do sistema de Justiça
Nenhuma estratégia de segurança pública é completa sem um sistema de justiça criminal célere, eficiente e justo. A morosidade processual e a percepção de impunidade corroem a confiança da população e diminuem o efeito dissuasório da lei. É fundamental investir na capacidade de investigação, em varas especializadas (como as de violência doméstica e familiar), e garantir que o processo legal, desde o registro da ocorrência até a sentença final, seja um instrumento eficaz de proteção e responsabilização, e não mais uma fonte de revitimização.
Conclusão: O enigma carioca e a sombra da Esfinge
Portanto, o Rio de Janeiro se encontra, metaforicamente, diante de sua própria Esfinge. O enigma proposto não envolve criaturas míticas, mas a intrincada charada da violência urbana: "O que combina policiamento ostensivo pela manhã, investigação qualificada ao meio-dia e políticas sociais preventivas ao entardecer, mas que, sem integração e vontade política, devora seus próprios cidadãos a qualquer hora?"
As respostas, como explorado ainda que, en passant, neste artigo, residem na aplicação inteligente da criminologia, na robustez do arcabouço jurídico e na implementação coordenada de políticas públicas que ataquem tanto os sintomas emergenciais quanto as causas profundas. As lições de Beccaria, Felson, Shaw, McKay e tantos outros estão disponíveis; as ferramentas legais, como a Lei Maria da Penha, existem.
A fina ironia reside na simplicidade brutal da escolha, tal qual a imposta ao herói grego. Não há meio-termo. Ou as autoridades responsáveis – em todas as esferas de poder – demonstram a sagacidade e a determinação para decifrar este complexo enigma carioca, articulando segurança, justiça e direitos sociais de forma eficaz e contínua, ou o monstro da violência, alimentado pela impunidade, pela desigualdade e pela inércia, continuará a crescer. E, como na lenda, a falha em encontrar a resposta correta não leva a um novo desafio, mas sim a ser, lenta e inexoravelmente, devorado. A população do Rio de Janeiro aguarda, não por um herói mítico, mas por uma resposta real e urgente, antes que a sombra da Esfinge se torne escuridão permanente.
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